Excertos do subsolo – Sobre a necessidade, sobre o esquecimento

Enquanto Clarissa não recuperava a memória, seu pai incumbiu Montserrat de aparecer na casa de Alex, onde Clarissa então morava, para conversar com ela de modo que ela não percebesse que estava sendo submetida à uma terapia. Como a desconfiança de Clarissa era muito ampla (parecia-lhe que todo mundo lhe tratava com excessivo cuidado nas atitudes e palavras) Montserrat não estava à salvo dessa desconfiança. A jovem, porém, não desconfiava que o psicanalista, todas as noites, elaborava uma narrativa para seu pai ao mesmo tempo em que procurava razões e soluções para sua amnésia.

Em uma noite qualquer Alex viu o pai de Clarissa, mais uma vez, surgir sem ser convidado. Montserrat ainda estava na sala, com Alex e Clarissa, e naturalmente levantou-se de súbito para cumprimentar o recém chegado. Clarissa sempre achou estranho o efeito que seu pai causava em Montserrat mas como todo seu cotidiano era perpassado por uma atmosfera plena de estranhamento, aquele cenário era apenas mais um elemento do surrealismo que mais e mais impregnava a compreensão com a qual Clarissa vivenciava seus dias ou os sonhos de suas noites. Seu pai então pediu que Alex levasse Clarissa para o centro da cidade, para que fizessem algumas compras. Sem ousar questionar, Alex obedeceu. Montserrat ficou então à sós com o pai de Clarissa que, como sempre, queria saber o que Clarissa havia lhe contado dessa vez.

– Acho que Clarissa está melhorando. Acho que alguma coisa aconteceu, mas ainda não sei o que. Ela finalmente está oferecendo uma narrativa com unidade acerca de si mesma. Em suma, as vivências novas não estão se dissipando diariamente como estava acontecendo.

O pai da menina olhou fixamente nos olhos de Montserrat. E perguntou-lhe, como se já soubesse a resposta, se ela relatara alguma nova amizade, alguma pessoa nova surgindo em seu cotidiano.

– Ela mencionou uma mulher. Mas não sei se é alguém real ou, o que temo, uma fantasia, um delírio. Uma mulher que aparece de forma sempre providencial demais para ser uma pessoa real. O senhor acha que isso já era esperado? – Sem responder a pergunta do psicanalista, o pai da menina apenas perguntou se essa mulher que Clarissa mencionava tinha, em seus relatos, algum nome.

– Morgana. – Disse Montserrat visivelmente nervoso.

O pai de Clarissa se levantou subitamente, saindo da casa de Alex e chaveando a porta, deixando Montserrat preso dentro da casa. Entre a casa e a rua havia um amplo gramado, e o céu estava tão limpo quanto a noite estava silenciosa. Como sempre, não havia ninguém nas calçadas ou nas janelas das casas. Apenas uma mulher, sentada no balanço que o pai de Clarissa fizera no lado de fora da residência de Alex. Olhava para o homem e sorria, serenamente.

– Francamente, como você demorou a perceber minha presença. O que mais eu precisaria fazer para você me notar, querido?

Era difícil ver o pai de Clarissa com uma expressão tão sisuda, tão séria. Mesmo assim, a seriedade não durou: um malicioso sorriso surgiu em seus lábios enquanto, sem mover o olhar um instante sequer, o pai de Clarissa foi até o balanço e deu um beijo na testa de Morgana. Sentou-se, então, à seu lado.

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– Eu sabia que se algum dia alguém poderia me surpreender e escapar à minha visão, seria você.

– Eu aprendi a espionar com você.

Morgana fazia referência à primeira vez que vira o pai de Clarissa. Aconteceu em tempos imemoriais, onde certamente seus nomes não eram esses ou talvez nenhum dos dois tivesse qualquer coisa como um nome. Morgana se banhava à beira de um rio e, ao perceber que era espionada, continuou seu banho apenas dizendo:

– Você definitivamente não deveria estar aqui. E mesmo que nunca tenha me visto, aposto que já sabe o quanto não gosto de ser observada. Mas aposto que também sabe que eu não poderia resistir à você, nem negar que gosto dessa sua petulância, que já a esperava. E aposto que sabia que eu ia dizer tudo isso.

O pai de Clarissa surgiu do bosque em que estava escondido e pôs-se nu. Morgana virou-se para ele. Olharam um para o outro durante muito, muito tempo. Com o mesmo sorriso que tinham então enquanto se balançavam na frente da casa de Alex.

– Eu sei, você sabe, nós dois sempre soubemos que não viveríamos sob o signo do acaso. Bem como sabemos o que vai acontecer. O que, honestamente, não torna nada menos provido da beleza. Mesmo esse nosso encontro, tão necessário, tão incontornável, tem a beleza da unicidade.

– Venha logo, meu amor, que há muito eu o esperava. – Disse Morgana, enquanto o pai de Clarissa se unia à ela no rio do esquecimento.

Clarissa foi, assim, concebida, sob o signo da necessidade e do esquecimento, mas principalmente sob o signo da unicidade. É por isso que ela caminha de maneira tão pouco civilizada nas lojas, segurando no braço de Alex: tem horror às prateleiras. Olha fixamente para o chão e tenta não prestar atenção em nada daquilo que é produzido em série. Sabe, mas quase não se importa, que todos olham para ela e Alex com certa piedade. Afinal, aquela menina sofre por alguma razão.

– Você vai ter que me soltar, Clarissa. Seu pai pediu que eu comprasse uma coisa que não posso carregar com você assim pendurada em mim.

A garota ouviu mas não tinha forças para atender o pedido de Alex. Assim, o rapaz viu-se obrigado a andar com uma menina pendurada em um braço e um enorme espelho sendo carregado com o outro.

– Sabe que é melhor que conversemos em outro lugar, não é mesmo? – perguntou o pai de Clarissa para Morgana, quando ouviu que muito, muito longe o carro de Alex já rumava de volta para casa.

– Sei, e sei que você sabe para onde vamos. E que você no fundo sabia que eu ia voltar, mas que não consegue acreditar que tenha esquecido. Mas que também sabe que esquecer de mim todo esse tempo era necessário.

– Sim, Morgana. Nós sabemos de tudo isso. Mas mesmo assim…

– Mesmo assim é bonito. Eu sei.

O pai de Clarissa sorriu novamente. Alex e Clarissa voltaram, e Morgana e o pai da menina já não estavam lá. Ouviam gritos horrendos vindos de dentro da casa. Com o espelho em mãos, Alex correu. Clarissa o acompanhou e, como em outros momentos, se lembrou de quem ela própria era. Parou por um instante e olhou para aquela casa, aquela rua deserta, aquela noite eterna e impecavelmente limpa e sentiu como se despertasse. Reparou que o balanço ainda se movia, como se alguém estivesse ali sentado há poucos instantes. Alex já estava em casa e tentava, inutilmente, ajudar Montserrat. Clarissa sabia o que fazer. Enquanto Alex tentava falar com um Montserrat que aos gritos estava ao chão em posição fetal, Clarissa entrou. Viu o espelho recostado à parede. Pegou um cinzeiro e o atirou no meio do espelho. Alex olhou para Clarissa. A menina fechava seus olhos e respirava profunda e lentamente. Montserrat, subitamente, se acalmou. A menina estendeu a mão. O psicanalista tinha o rosto manchado do sangue de que eram feitas suas próprias lágrimas. Calmamente, Clarissa conduziu Montserrat até a frente do espelho quebrado e o fez se olhar no mesmo. A imagem estilhaçada de ambos surgiu. “Fique calmo, meu amigo. Fique calmo. É a minha vez de lhe ajudar. Você não vai se esquecer de quem você é, eu prometo”.

Sobre O narrativista

De que vale a vida se o ensaio da vida já é a própria vida?
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