“O livro do idílio e da nostalgia”, de Milan Kundera

A nova e surpreendente obra de Milan Kundera, já quase um nonagenário, corre o risco de se tornar um best-seller como foi A insustentável leveza do ser já que aos 88 anos Kundera surpreende a todos com um romance complexo que certamente será considerado um dos pontos altos de sua obra romanesca.

Se em O livro do riso e do esquecimentoA insustentável leveza do ser Kundera já praticava uma polifonia que encontraria seu acabamento estético em A imortalidade, em O livro do idílio e da nostalgia Kundera, quase trinta anos depois, mostra um trabalho que certamente demandou tempo e esforço para ser construído. Com cerca de trezentas páginas divididas em sete partes, Kundera mostra uma lucidez talvez incomparável mesmo àquela exibida em A imortalidade. Passeando pelos perpétuos temas do erotismo, das ironias trágicas da existência e dos paradoxos da vida na modernidade, Kundera opera como um verdadeiro sismógrafo, mostrando quais placas tectônicas de memória impregnada se movem quando as sempre surpreendentes crises irrompem mudando nosso mundo.

Como é de praxe, Kundera satura sua prosa de meditação reflexiva. Quem o acompanha na maior parte do tempo dessa vez são os existencialistas – influências sempre implícitas no clima de suas obras e em seu imaginário mas, dessa vez, trazidas à ribalta. Comentando os romances, teorias e vidas de pessoas como Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Kundera medita sobre ideias como “liberdade”, “responsabilidade”, “absurdo”, “gênero”, “revolta”. Ironico e impiedoso como habitualmente, Kundera dispara contra os existencialistas assim como outrora já disparou contra os surrealistas: ávidos por uma vida autêntica e transparente, dominados pelo afã de modernidade, os existencialistas são, na pena de Kundera, um privilegiado observatório daquilo que Hannah Arendt chamaria de “fragilidade das coisas humanas”. É em torno deles que a palavra “idílio” do título orbita.

Mas lembramos que O livro do idílio e da nostalgia é uma obra romanesca e, portanto, tem personagens. Sua heroína derradeira é Alexa, uma emigrada descendente de decadentes aristocratas russos. Para que essa resenha não revele demais do enredo, diremos o mínimo sobre Alexa que, tendo vivido na República Tcheca desde a infância, sentiu na própria pele a invasão dos russos à República Tcheca antes de poder voltar já adulta, nos anos 90, para Moscou. Kundera nos oferece um dos mais ricos panoramas da descontinuidade de ritmos na qual os tempos modernos passam nas diferentes partes do mundo através dos diálogos de Alexa: seu berço aristocrata e sua formação de historiadora fazem o que nenhum personagem de Kundera jamais fez, a saber, apanhar o próprio autor em um enquadramento reflexivo acerca de sua prática e dos entornos dela. O diálogo final entre Alexa e o próprio Kundera parece um testamento definitivo do autor acerca de sua própria prática, uma prática nostálgica de um esteta hedonista em um mundo onde o cerco se fecha, mais uma vez, para tipos como ele.

O livro do idílio e da nostalgia já nasce um clássico definitivo, embora lhe falte talvez a característica mais fundamental: a existência.

Milan Kundera

Hoje é aniversário de Milan Kundera. E essa brincadeira de primeiro de abril é meu registro da admiração por sua obra, por sua prosa, por seu pensamento.

Sobre O narrativista

De que vale a vida se o ensaio da vida já é a própria vida?
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