Mr. Nobody: a utopia de viver todas as possibilidades

Continuando essa sequência de posts, que já se arrasta por tempo demais, comento o terceiro filme que decidi classificar como uma “Utopia do Arrependido”. Trata-se de Mr. Nobody, de Jaco van Dormael, com Jared Leto.

A história é narrada por Nemo Nobody, "o último dos mortais".

A história é narrada por Nemo Nobody, “o último dos mortais”.

Praticamente desconhecido no Brasil, Mr. Nobody é um daqueles filmes que apela mais para o “sentir” do que para o “inteligir’. Ou, ao menos, assim deveria ser para que não se sacrifique sua beleza – ou a possibilidade desta. Porque as promissórias para uma inteligibilidade do filme são consideravelmente caras, e exigem mais do que boa-vontade do espectador: exigem também algum conhecimento básico de física e de ciências em geral, tendo em vista que é o menos auto-explicativo dos filmes – o que, aliás, faz com que Jared Leto apareça mais de uma vez no papel de narrador-comentador ao invés de  simples personagem.

O enredo é muito interessante e cativa na medida em que se desdobra de maneira muito dinâmica: um garoto tem sua vida desdobrada em dois caminhos distintos no instante em que os pais se separam. Uma de suas versões fica com a mãe e outra fica com o pai. Esses dois caminhos alternativos se desdobrarão em mais três, na medida em que outros mundos possíveis surgem quando este decide por se envolver com esta ou aquela garota. Assim, cotejando esses três mundos paralelos em seus relativos desdobramentos, somos conduzidos pelo filme que ainda possui um quarto cenário, no qual o personagem principal é o narrador da própria história, acabou de acordar de um coma, tem mais de 100 anos e é o “último mortal” que morrerá de morte natural. Esta versão anciã narra a própria vida em três registros distintos, o que deixa o entrevistador confuso. No final do filme, temos um aparente acontecimento do “Big Crunch” (a sístole de um universo que ainda sofria as consequências de um diastólico “Big Bang”) e vê-se um movimento de retrocesso físico de todas as coisas: tudo começa a andar para trás. E, de modo surreal, o filme termina nos deixando com o sentimento de que fomos convidados a fazer a existência “valer a pena”.

A física e a metafísica da segunda chance

Como eu disse antes, a presença da “teoria” acompanhando o filme se faz necessária e isso pode ser percebido pela presença de Jared Leto, em intervalos regulares, apresentando de maneira catedrática alguns tópicos de teoria física. Contudo, a teoria não constitui chave para completa compreensão do filme, mas para sua compreensão mínima que, insisto, é apenas pano de fundo para sua verdadeira fruição estética: a contemplação de uma existência desdobrada em diversas variações “quânticas”. Ao invés de apelar para o intelecto, o filme apela para a sensibilidade e serve-se da física dos mundos possíveis como metáfora para explorar esses universos distintos. É o aspecto existencial das escolhas do protagonista que nos interessam, e que nos deixam na ponta do sofá até as últimas cenas, torcendo para um final feliz entre Nemo Nobody (Jared Leto) e Anna (Diane Kruger).

As possibilidades de Nemo já se anunciavam desde sua infância.

As possibilidades de Nemo já se anunciavam desde sua infância.

Sendo talvez tão “colorido” quanto um Efeito Borboleta (que não entrou na minha lista porque, precisamente, é colorido demais), é nas relações amorosas do protagonista que a narrativa é focada, fazendo com que mensuremos o sucesso das diferentes vidas de Nemo pelo sucesso que tem ou não as suas relações amorosas. Assim, vemos Nemo envolvido com a maníaco-depressiva Elise e com a delicadíssima Jean em vidas nas quais, mais ou menos, prosperou financeiramente. O mundo paralelo no qual Nemo fica com Anna é precisamente aquele no qual ele fica com o pai doente, sacrificando sua vida e sua juventude dividido entre o trabalho e os cuidados com o pai. À esta altura do filme, já compreendemos que o principal apelo emocional/sentimental do filme é a possibilidade do reencontro de Nemo e Anna em um mundo no qual se afastaram através dos anos mas no qual também jamais se esqueceram. De qualquer modo, para o espectador, o valor dessa vida possível só se permite elucidar por contraste e comparação com as outras vidas que Nemo leva.

É possível mesmo visualizar elementos de um esoterismo “new age” no filme, na medida em que Nemo e Anna parecem se comunicar – talvez mesmo sem saber – através de pensamentos. Além disso, a sequencia inicial apela para a metáfora dos anjos ao exibir as primeiras memórias de Nemo, justamente antes do nascimento: Nemo é capaz de lembrar que diferentemente do que fazem com todas as crianças, os anjos não colocaram o dedo sob seus lábios e não selaram suas lembranças, o que dá fundamento para os múltiplos caminhos de Nemo no filme, afinal, este seria capaz mesmo de se lembrar de todas suas vidas possíveis.

Uma das mais belas colagens de narrativas que já tive o prazer de assistir, Mr. Nobody é delicadíssimo e sua falta de reconhecimento mainstream se justifica: mesmo “colorido”, Mr. Nobody não nos oferece um fechamento inteligível senão ao custo de promissórias muito caras. De qualquer maneira, as duas horas de filme se prestam com esmero àquela que é uma das principais virtudes de uma narrativa de ficção, a saber, a exploração de possibilidades da existência. Quando a arte faz isso de maneira meta-referencial e sem muitos sacrifícios, merece elogios.

Toby Regbo e Juno Temple nos papéis de Nemo e Anna quando jovens.

Toby Regbo e Juno Temple nos papéis de Nemo e Anna quando jovens.

Sobre O narrativista

De que vale a vida se o ensaio da vida já é a própria vida?
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18 respostas para Mr. Nobody: a utopia de viver todas as possibilidades

  1. Eduardo disse:

    Valeu, entendi um pouco mais o filme, mas ainda não entendi o final entre outras coisas, do porque todas as escolhas são certas etc…

    • Laíne Carvalho disse:

      Todas as escolhas são certas porque são reais, tipo, não tem a ver como agir bem ou mal, mas sim com existir, eram certas porque eram possíveis nas situações em que ele se encontravam, por exemplo, elas seriam erradas se apresentassem pessoas diferentes e que ele não conhecia, seriam erradas se fosse as possibilidades de outra pessoa dentro das situações dele. Foi isso que eu entendi pelo menos. Espero ter ajudado! :)

  2. quando vi a primeira vez, fiquei procurando entender, mas depois entendi que não há como entender por completo é apenas pra sentir, ainda assim, é um filme que mexeu muito comigo, eu adorei, um dos melhores que já vi. Me fez pensar sobre as escolhas.

  3. Lucas disse:

    Esperava eu que Nemo era um ser (humano) que era capaz de presenciar as 4 dimensões (3 espaciais e uma temporal), portanto, este estaria vivendo todos as possibilidades e momentos ao mesmo tempo, visto ser pertencente a quatro dimensões, porém, o filme não me decepcionou com a narrativa, só foi diferente do que eu pensava.

    Achei muito triste a história dele e da Ana, deixou um aperto no meu coração e uma vontade de os ver juntos, apesar deles terem se encontrado no “final”, fora uma paixão tão bonita e forte que desejei sentir o mesmo, e senti !

    • mas todos nós vivemoes em 4 dimensóes: altura, largura, profundidade e tempo.

      • André Adolfo disse:

        Também esperava algo surreal/super-humano como ele viver simultaneamente infinitas vidas e ter ciências de todas (como Ashton em Efeito borboleta).
        Mas o fim do filme é mais simples: todas as escolhas imagináveis são possíveis e nenhuma é mais certa ou errada que as outras.

    • Tive a mesma sensação em relação a ele e a Ana, me deu um aperto no coração a separação deles quando jovens!

  4. Augusto disse:

    Só tem uma coisa errada ai. O caminho que Nemo segue é justamente o que ele morava com a mae e disse que teria uma piscina, nesse mesmo universo Anna vai embora pra Nova York. Nemo começa a trabalhar lavando piscinas e sem sucesso financeiro. Os universos em que Nemo permanece com o pai, ele se envolve com a Elise e a Jean. Não tem ligação entre Anna e o pau dele.

  5. Tania Cristina disse:

    Um filme lindo,sensível,muito bem feito e que nos faz pensar não só nas realidades paralelas acontecendo agora como na difícil arte de fazer escolhas.Sim,o autor aqui errou,Nemo fica com Anna a partir da ida com a mãe,pois com o pai só ficou com a Elise e a Jean.

  6. Matheus Muniz disse:

    Análise perfeita. Compreensão perfeita. Tão encantadora quanto o filme.

  7. Fagner disse:

    O que eu entendir foi o seguinte… Ele conseguia ver seus futuros distintos que iam se moldando por meio de suas escolhas. Beleza, quando chega na parte em que ele tem que descidir entre a mae e o pai, nesse momento ele se ver tao pressionado que consegue ver seus futuros distintos. E o Mr ninguem(o velho), quando diz ao jornalista, q nem ele e nem o jornalista existia, simbolizava apenas mais um futuro dele, um futuro, q talvez fosse, ou é o futuro que ele escolheu viver. De todos os futuros possiveis, ele escolheu ir com a mae, fugir, ser morador de rua, se encontrar com a anna, desencontrar ela, e depois reencontra-la.

    • André Adolfo disse:

      Nessa interpretação, Mr. Nobody se parece muito com Nicholas Cage em O vidente (2007), onde o vidente não prevê o futuro único, mas todos os futuros e assim pode escolher as opções certas para o desfecho desejado.
      Aliás, prever o futuro único é inútil, pois você ou fica preso a ele sem opção de alterá-lo ou ele deixa de ser futuro.

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