Nossa escolha é a euforia

Eis uma passagem simplesmente memorável de um livro que sobre o qual já falei aqui em uma outra oportunidade. Fiz um recorte que torna o diálogo quase teatral, distorcendo um pouco o sentido que ele assume dentro do romance, com todas as involuções narrativas que o autor realiza nas páginas em que ele acontece. No entanto, penso que não sacrifiquei demais o sentido da passagem. Ei-la abaixo.

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Leroy: “Ora, nosso século nos fez compreender uma coisa enorme: o homem não é capaz de mudar o mundo e nunca irá mudá-lo. É a conclusão fundamental de minha experiência de revolucionário. Conclusão, aliás, tacitamente aceita por todos. Mas há uma outra que vai além. Ela é teológica e diz: o homem não tem o direito de mudar aquilo que Deus criou. É preciso ir até o fim dessa interdição.”

Chantal: “De acordo, também acho que todas as mudanças são nefastas. Nesse caso, seria nosso dever proteger o mundo contra as mudanças. Infelizmente, o mundo não sabe parar o fluxo louco de suas transformações…”.

Leroy: “… do qual o homem, no entanto, não passa de um simples instrumento. A intenção de uma locomotiva contém o germe do plano de um avião que, inelutavelmente, leva a um foguete espacial. Essa lógica está contida nas próprias coisas, em outras palavras, faz parte do projeto divino. Você pode substituir completamente a humanidade por uma outra, isso não impedirá que continue intacta a evolução que vai da bicicleta ao foguete. O homem não é o autor dessa evolução, é simplesmente um executante. E mesmo um pobre executante, já que ele não conhece o sentido daquilo que executa. Esse sentido não nos pertence, pertence apenas a Deus e só estamos aqui para obedecer a ele a fim de que possa fazer aquilo que lhe agrada.”

Senhora distinta: “Mas, nesse caso, porque estamos aqui na terra? Por que vivemos?”

Leroy: “Por que vivemos? Para fornecer a Deus a carne humana. Pois a Bíblia não nos pede, cara senhora, que encontremos o sentido da vida. Ele nos pede que procriemos. Amai-vos e procriai. Entenda bem: o sentido desse ‘amai-vos’ é determinado por esse ‘procriai’. Esse ‘amai-vos’, portanto, não significa absolutamente amor caritativo, misericordioso, espiritual ou passional, mas quer dizer simplesmente: ‘fazei amor!”, ‘copulai!’. ‘Trepai!’ É nisso e apenas nisso que consiste o sentido da vida humana. Todo o resto é besteira.”

Senhora distinta: “Estamos descendo.”

Chantal: “Para o inferno.”

Senhora distinta: “Estamos descendo cada vez mais fundo.”

Chantal: “Lá onde está a verdade”.

Leroy: “Lá onde se encontra a resposta para sua pergunta: por que vivemos? o que é essencial na vida? O essencial, na vida, é perpetuar a vida: é o parto, e aquilo que o precede, o coito, e o que precede o coito, a sedução, isto é, os beijos, os cabelos soltos ao vento, as calcinhas, os sutiãs bem cortados, mais tudo o que torna as pessoas aptas para o coito, isto é, a comida, não a grande cozinha, essa coisa supérflua que ninguém mais aprecia, mas a comida que todo mundo compra, e com a comida a defecação, pois a senhora sabe, minha cara senhora, minha bela senhora adorada, a senhora sabe que lugar importante ocupa na nossa profissão o elogio do papel higiênico e das fraldas. Papel higiênico, fraldas, sabão em pó, comida. É o círculo sagrado do homem, e nossa missão é não apenas descobrí-lo, aprendê-lo e delimitá-lo, mas torná-lo belo, transformá-lo em canto. Graças à nossa influência o papel higiênico é quase exclusivamente de cor rosa e esse é um fato altamente edificante sobre o qual lhe recomendo, minha cara e ansiosa senhora, meditar bastante.”

Senhora distinta: “Mas então é a miséria, a miséria! É a miséria maquiada! Nós somos os maquiadores da miséria!”.

Leroy: “Sim, exatamente.”

Senhora distinta: “Mas, nesse caso, onde está a grandeza da vida? Se estamos condenados à comida, ao coito, ao papel higiênico, o que somos? E, se somos capazes apenas disso, que orgulho podemos sentir pelo fato de sermos, como dizem que éramos, seres livres?”

Leroy: “A liberdade? Ao viver a sua miséria, a senhora pode ser infeliz ou feliz. É nessa escolha que consiste sua liberdade. A senhora é livre para dissolver sua individualidade na panela da multidão com um sentimento de derrota, ou então com euforia. Nossa escolha, minha cara senhora, é a euforia.”

Em A Identidade, de Milan Kundera. Imagem retirada do site Decadent Lifestyle.

Sobre O narrativista

De que vale a vida se o ensaio da vida já é a própria vida?
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7 respostas para Nossa escolha é a euforia

  1. Bruno R Mendonça disse:

    Vitor,

    em primeiro lugar, chama atenção as características formais dessa liberdade: uma liberdade que não envolve responsabilidade, talvez apenas com a preservação do valor da própria vida… por outro lado, a premissa central é claramente questionável: porque mudanças são impossíveis, por isso devemos evitá-las e, mais, defender o mundo delas? me explica isso…

    Um abraço, Bruno.

  2. Victor da Filosofia disse:

    Bruno,

    Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário. Quanto as questões, digo que postei o trecho mais por razões estéticas do que éticas – como quase sempre faço por aqui. Mas, tentando pensar junto com você, me parece antes que não faz sentido tentar evitar as mudanças, pela mesma razão que não faz sentido tentar produzi-las. São, afinal, impossíveis!

    É o fatalismo dessa passagem que me chama a atenção. É uma perspectiva bastante comum, bastante encontrada nos discursos por aí, sobretudo quando é preciso utilizar algum pretexto com verniz de racionalidade para a inação. Principalmente quando vem acompanhada dessa “enxovalhação” da ideia de dignidade humana.

    A menção à essa ideia de humanidade pensada como instrumento do progresso – e não seu senhor – é mais uma coisa que me faz gostar do Kundera: nota-se os dois pés na tradição filosófica numa passagem destas. Misturar isso com teologia e transformar o ‘amai’ em ‘trepai’, por fim, é tão engraçado quanto genial.

    Não sei o que dizer com relação à essa liberdade que não é mais do que uma liberdade relativa ao modo de dispor-se. Eventos necessários e uma humanidade contingente: o que seria essa liberdade? Eu não sei. Parece mesmo um conceito bastante inconsistente de liberdade, embora seja provavelmente mais parecido com nossa experiência cotidiana de liberdade do que as ideias de liberdade de nossos filósofos favoritos, hahaha.

    Abraço!

  3. Apreciei a escolha da imagem pra ilustrar o post. Bem apropriada.

  4. brunrmendonca disse:

    Vitor: não me lembrava dessa postagem, nem do comentário que deixei acima. Hoje me chama atenção outro tema dessa passagem. De fato, a imagem impressiona (essa imagem irracionalista da técnica também é sugerida em outros lugares. N’Os Negros Anos Luz, por exemplo, o filósofo ‘Wittgenbatcher’ compara a exploração especial com o padrão de migração das aves!). No entanto, minha opinião pessoal: essa imagem é pouco plausível diante dos dados históricos. A resolução de problemas científicos e tecnológicos exige dedicação mais genuína do que a de simplesmente “fornecer a deus a carne humana”. Essa dedicação é mais genuína, primeiro, em sentido temporal; em segundo lugar, em sentido intelectual (a resolução de problemas técnicos apenas se assemelha a resolução de problemas práticos). Obviamente, a questão da natureza da ciência e da técnica é filosófica e, logo, não resolvida, mas a posição irracionalista ainda não me persuade. Veja bem, não se trata de superestimar as capacidades intelectuais humanas (e os frutos sempre irrisórios que gera), mas de reconhecer que elas existem e que nós nos dedicamos a elas (o que é, por si só, um fato inexplicado e talvez inexplicável da natureza humana, como já notaram alguns filósofos).

    Um abraço, Bruno.

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